terça-feira, 21 de maio de 2013

ORAÇÃO


Senhor,
Mata em mim
Cada vez mais
O que há de particular,
Permitindo que eu me faça
Cada vez mais universal.

COISAS DO SÓ


Mais fácil enxugar uma pedra de gelo
Que adivinhar o que me vai no peito.
Há um vazio oceânico em mim,
Gritos amordaçados, vontades vãs
Desconfianças do que não sei.

Melhor fora morrer, perder a forma
A dilapidar o próprio espanto
Estampado em cada gesto e intenção.

Melhor habitar o imaginário de outro
Do que se imaginar outro, e outro
Observar em si a consumação da dor.

Melhor fora nunca haver sido,
Não ter nascido, a ter que se ver
Alijado do que foi pretendido.

Sempre que durmo, uma estrela,
Dessas baldias e tontas, vagabunda
Deixa o céu mais escuro e triste
Porque foge e vem me visitar.

Sem ter o que falar,
apenas espio. 

AMPUTAÇÕES (Pro Leone, meu filho, um pedaço de mim)


Se era para me dividir, podiam
Servir-se de muitos expedientes.

Poderiam, por exemplo,
Amputar-me uma das pernas, mas,
Ainda assim eu me valeria
De muletas, de uma perna de pau,
Uma prótese, ou saltitaria num pé só,
Como um batráquio exótico, estranho.
Mas a minha alma continuaria inteira.

Poderiam amputar as duas pernas
E eu usaria duas muletas, duas próteses,
Duas pernas de pau, ou uma cadeira de rodas.
E, cyborg compulsório, ainda assim
A minha alma continuaria inteira.

Poderiam arrancar-me um olho
E eu perderia a noção de perspectiva,
Avaliaria mal a profundidade do espaço
E seria confusa a posição relativa dos objetos,
Mas a minha alma continuaria inteira.

Poderiam arrancar-me os dois olhos,
Lançando-me numa noite permanente
De objetos sem cores e de formas presumidas,
Só de sons, cheiros e imaginação.
Mas, ainda assim, tateando na negritude
A minha alma estaria inteira.

Arrancassem-me o braço direito
E num supremo esforço eu me tornaria canhoto.

Arrancassem o esquerdo, o direito perderia
Prestimoso auxiliar, mas aprenderia a se virar
Sozinho, tornando-se amigo do queixo,
Com a minha alma continuando inteira. 

Amputada a língua, eu continuaria escrevendo,
Desenhando, gesticulando as minhas intenções,
Os meus desejos, as negativas e necessidades,
Com a alma íntegra, totalmente inteira.

Arrancadas as orelhas, eu ouviria difuso,
Sem noção da posição de origem dos sons.
Surdo, eu aprenderia a linguagem muda do mundo,
Servindo-me de minha alma, ainda inteira.

Até mesmo castrado eu surpreenderia a parceira,
Fazendo-me todo órgão sexual em exercício
Porque amamos com a alma,
E a minha estaria amando inteira.

Poderiam, num esforço supremo de crueldade,
Apartar-me de uma das metades do meu cérebro.

Fosse a metade emocional, eu me tornaria um robô
descrevendo matematicamente cada sentimento,
explicando as relações humanas por equações,
com a alma devidamente digitalizada, mas inteira.

Fosse a metade racional e eu me transformaria
Em só sentimentos, só coração a comandar a vida
Posta a disposição da minha alma sempre inteira.

Só não poderiam me apartar do meu filho porque
Esta é uma tentativa de amputação de outra ordem,
No mais íntimo da alma e a alma é indivisível.

Doa-se por inteira, nega-se por inteira,
Deseja por inteira.

Se tentam subtraí-la de parte de si
Não resiste. Definha, agoniza e morre.

SOBRE CÃES E CADELAS


No cio, as cadelas se apressam
a deitar juras de fidelidade eterna
e incondicional dedicação.

Mal desmama a cria,
desfaz-se do macho,
cuja incumbência,
por passageira e descompromissada,
já terminou.

A partir de então o cãozinho
se torna merecedor de todo afago,
de canina proteção. Mas, sem pai,
órfão por repetitiva e materna opção,
a se repetir geração a geração,
o bichinho cresce sem referências,
sabedor que é só subproduto do cio.

Deve ser por isso que, adultos,
os cães se tornam vulgares vira-latas,
sem iniciativas, ambições e propósitos,
ou feras investindo sobre o mundo,
quando não se rendem,
servis e incondicionalmente
despersonalizados,
ao primeiro dono que aparece.

Ambíguo, pairo
Entre as cores
E a escuridão,
Cuidando a luz
Como pedra ou pó,
Poeira penetrando
A alma estarrecida,
Como num porre
Colossal.

COISA TEMPORÃ



Perdão, menina, mas acho que você chegou tarde.
Cansado de tantas chegadas e tantas despedidas,
Esqueci como se colhe flores e estrelas,
Nem sei mais fazer poemas brindando coisas de amor.

Acho que sequei, e só um temporal repentino
Para me molhar de novo, e de novo me reinaugurar
Menino enamorado correndo na chuva e nos dias.

E quem me ver sorrindo do nada, rindo de tudo
Dirá: eis que se vai um mentiroso, um impostor.
Arranjou netos, conseguiu rugas, cansou o corpo
Só por fingimento, para esconder o menino tardio que,

Baldio e tonto permaneceu clandestino e calado,
Esperando você chegar. 

DECEPÇÃO


A traição. Sim, a traição
Mas não a do funcionário
Que depositário da honra
Subtrai sorrateiro e miúdo.

Pior. Não a traição do amigo que,
Diante de situação urgente se furta
A sofrer junto e junto partilhar
Dificuldades e carências, sofrimentos.

Traição pior, muito pior que a do corpo
amado em repasto distante, ausente
nos sussurros do pudor em delito,
nos gemidos da honra fazendo-se nada
e das juras e promessas violentadas.

Traição solerte e baixa, assim como
A do filho que não afaga e respeita
A mão que o alimenta e protege,
Agasalha nas tempestades emocionais.

A traição das mãos solidárias
sobre a cabeça confusa fugindo
do vazio numa explosão de dor
e que agora gesticulam urgentes adeuses.

E da voz aparentemente materna
Outrora, capaz de fechar chagas
E conter hemorragias, de acalentar,
E que agora, mergulhada na falsidade
Se esquece que um dia, cúmplice,
Em aparente sinceridade
Ousou balbuciar: “meu filho”.

Se a noite não demora
E o nanquim esconde cores,
de tudo só ficam as dores.

ORAÇÃO


Senhor, permita que, afrontado
Eu arranque do mais íntimo de mim
A providencial covardia, a acomodação
Do imune às ofensivas do mundo.

Humilhado, me admita mesmo um nada
Em permanente resignação acomodada.

Lacerado na própria carne dolorida,
Que eu encontre forças para perdoar.

Faz de cada gemido meu oração contrita
Ao meu algoz adormecido na violência.

Mas, sobretudo, que eu não desanime
Diante dos ingratos, e me curve a mim
Desanimado, disposto às negativas.

Fazei com que menos reconheçam
Mais eu dê, empreste, me entregue.

Faz-me de algodão para os leves
E de aço para os duros, para que,
Semelhante eu os possa suportar
E me fazer inteligível e aceito.

Assim, talvez que na hora derradeira
Eu sorria o riso franco, certo de que
Fui útil, ou tentei, à minha maneira.

DEUS


Logo após as fraldas, antes,
Bem antes do primeiro corpo nu
E das filosofias e sociologias,
Entre brinquedos e inocência
Apresentaram-me um homem.

Era magro, muito magro,
Quase nu esvaindo-se em sangue,
E olhar perdido longe, ausente,
Na imensidão do para sempre.

Deus! Disseram-me, Deus!

Mas como o Criador sucumbir,
Impotente e lategado, nas mãos
Das criaturas? Como morrer
Da morte por Ele mesmo criada?

Não, aquele não era Deus, senão
O maior de nós nos apontando
O Deus que insistimos em sepultar
No mais íntimo de cada um de nós.


Ontem saí pela cidade
Exercitando um novo olhar.

Não procurei flores atormentadas
Nos jardins de clausura do concreto
Nem nas quinas e ângulos, nas esquadrias
Que reduzem os homens a componentes
Simplesmente complementares.

Daqui a pouco serei só rastro, vestígio
Lenda de netos, equívoco que passou
Mal percebido e rápido, um meteoro
Em queda livre para se apagar.

De mim dirão por pouco tempo
E por menos tempo se lembrarão
Até que se consuma o esquecimento
Sem que eu saiba, sem lamento.

Cada homem é só um acidente
De curta duração. A vida...
Só um momento.

ENTRESSAFRA


Cadê aqueles poemas que em todas as noites
Passavam por aqui, como fachos na escuridão,
Iluminando o que vinha adiante e à frente,
Farol em permanente orientação noturna?

Que fizeram dos meus poemas que não sei?
Perderam-se, aposentaram-se ou já morreram?
Habitam hoje peitos mais afeitos à poesia,
ou é só ausência temporária, férias inesperadas?

Voltarão numa revoada de palavras, em jorros
De sensações inesperadas, apreensão e medo
Esculpindo-os, verso a verso, sobre o branco

Ou imunes à minha espera foram-se todos
Sem aviso prévio ou consolo, pelo menos
Um sinal de que eu ficaria órfão, parcial,
Com o meu melhor pedaço amputado?

Há canções que seduzem e encantam,
Tornam-se asas a nos impulsionar,
E canções que purgam e sangram.
Foram feitas para matar.


É hora de me dissociar, me espalhar
Pondo cada átomo meu em cada coisa
Até ser parte de tudo e em tudo estar.

O meu calvário é feito
De angústias e ausências,
de réquiens e saudades,
de homenagens póstumas
e retratos desbotados
nos móveis da sala.

Movo-me automático
Entre vultos que não vejo
E cheiros que só pressinto,
Como se desnecessários
Sentidos e vontades.

Meus dias, conto-os
Em ordem decrescente,
Antevendo encontros,
festa de libertação.

LOUCO


Sempre quis saber
O que é ser só
Ou só ser.

Então tranquei-me com tintas
E saí colorindo tudo,
dando a tudo a minha cara
em cada detalhe dos dias.

Mas eu não estava só,
continuava-me nos pincéis,
nas espátulas, nas superfícies
indagando-me os propósitos.

E decidi escrever,
Deixar-me escorrer distraído
Em forma de versos, de textos
Que logo tornaram-se anexos de mim.

E a cada vez que alguém os leu
Desnudou-me, e não me senti só.

Até que me tranquei, e livre dos homens
Estabeleci diálogos interiores, às vezes,
Ou com palavras ditas ou gritadas,
Sem testemunhos, interlocutores,
Críticos, mediadores, palpiteiros de plantão.

Afirmei-me, e me discordei ou confirmei.
Neguei e fiz a réplica, ataquei com tréplica,
Pedi aparte, complementei, discursei...

Até que me tornei uno, um só,
Desfilando a minha loucura nas tardes. 

LÓGICA ZEN


Você diz que o meu poema é belo,
Obrigado, mas se for só, não basta.
Uma lanterna de ouro que não acende
Pode ser qualquer coisa, menos lanterna.

SOMBRA


Nunca fui único
porque sempre fui dois,
eu e a minha sombra,
de tal maneira íntimos
que apartado dela
só me senti parte,
um pedaço de mim.

Enquanto o meu corpo,
escravo da matéria,
prisioneiro do tempo,
cativo do espaço,
manteve-se sempre
nos estreitos limites
da forma determinada,

rebelde, a minha sombra
ora encolhia
ora se esticava,
às vezes difusa,
às vezes declarada e clara.

OUVINDO STING (Fragile)


Entre a última estrela da manhã
E a primeira da noite escura
Vou metabolizando a minha dor,
Como se natural e suportável
Esse universo vazio e frio
Expandindo-se dentro de mim.

Pego palavras de palpite
Como um entomólogo
Num bando de borboletas.

Esta se presta melhor
Porque soa e ressoa,
Aquela porque cala.

Eu caço palavras e termos
Como os sanitaristas
Caçam enfermos.

Insuportavelmente bela
Ela crispa olhares
Sobre o que humilha
Pela simples presença.

MARIA, MÃE


Maria, roga ao Pai,
Ao Filho e, se possível,
Ao Espírito Santo,
Chuvas de honra,
Inundações de indignação,
Terremotos de bons propósitos
Tsunamis de amor ao próximo
Epidemias de compaixão.

Imaculada Mãe Santa,
Manto da humanidade,
Cobre com a lava quente e doce
Do teu olhar cada recanto.

Avassala de piedade os palácios
E de justiça os casebres
Que se erguem sobre a miséria
Dos teus filhos sentindo-se órfãos
Porque esquecidos do teu colo
Bem aventurado, esperando
Que plantas santas brotem
Da sensatez adormecida.

CARNAVAL


No cosmos escuro e frio,
Entre galáxias e nebulosas
Um gigante olho secreto
Observa insetos coloridos
 Adejando loucos e tontos
  Entre tambores e tamborins

RUSGAS


Esses amores obscuros
Feitos de tensão e medo
E que habitam o imponderável
Como plumas perdidas no vento.

Esses amores que não conhecem a paz
Mas tréguas entre combates,
Sempre armados e alertas, revidando
Ainda que o gesto não seja hostil.

Esses amores retrancados e defensivos
Rebatendo até o que não entende,
Se defendendo até do que não existe
Como numa barricada de soldados loucos.

Esses amores miúdos porque terminais
Como entardeceres de temporais
Anunciando longas noites de lágrimas
A serem evaporadas em manhãs de sol.

Há em mim uma artéria desencontrada
Confundindo essa estranha anatomia.

Parte do átrio ou do ventrículo, não sei.
Percorre cada nervo exposto, músculos,
E atravessa a pele, ganhando o mundo.

Estranho réptil ou bizarro rabo, arrasta-se
Sobre o solo, escala cumes, nada lagos,
Percorrendo cada palmo do mundo,
Sem encontrar obstáculos e impedimentos
Capazes de conter-me em mim distraído.

Entre o concreto e o abstrato
O meu coração sangra
No mercado.

Entre gôndolas e rostos
Meus passos displicentes
Percorrem a eternidade.

Curioso de outros corações
Apenas espio.


               Canções, abstrações
Que se querem concretas
E encarnam nossos corpos
Como órgãos a mais
Orientando o metabolismo.

Hóspedes não convidadas
Orientando o cotidiano
E estabelecendo limites
Para as nossas vidas
Afeitas à surdez do peito.

AUTOBIOGRAFIA


Não ganhei o Oscar
Nem mesmo o Nobel
Nenhuma medalha olímpica
Nem a Copa do Mundo.

Nem uma pífia comenda
Um título sequer.
Minha medalha a trouxe
Sempre atrás da lapela

Depois da pele, dos músculos
Atrás das costelas.
Minha medalha é grande
E vermelha. E sangra.

MISSÃO DE POETA


A poesia está em todo lugar.
Jorra entre pétalas no jardim
E chora no olhar desfolhado
Da criança que perambula
Corredores desertos de mãos.

A poesia não veste fantasia,
Mostra-se, concreta e clara
Em cada fresta do dia:

No olhar baldio da moça
Que gira a bolsa e a vida
Entre moedas e orgasmos;

Nas mãos de lixa e calos
Do homem que cava a manhã
E na corrida dos colegiais
Contaminados de risos e gritos.

A poesia está em todo lugar,
Mesmo no discurso apologético
Do político que lavra miséria
Em cada palavra que pronuncia,

E até na pá do papa-defuntos
Semeando a eternidade no chão
Que se edificará árvore ou muro.

Ao poeta compete apartá-la
Do comum e trivial, do vão
Estampado na folha do jornal.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

CLANDESTINO


Se me fosse possível
Recuperar os poemas
Incinerados por amor

E recuperar os roubados
E encontrar os perdidos

E tão principalmente
Escrever os só pensados
Ou somente sentidos

Os leitores espantados
Surpreendentemente
Diriam: meu Deus,
Ele é poeta!

QUERO


Quero amar com a intempestividade dos loucos,
A loucura dos poetas, a poesia de um anjo
Displicente cochilando em sua cabeceira.

FEELING


O amor, ah! O amor,
Aquele vácuo repentino
Que nos afoga e enobrece,
Reduz a parte do outro.

Sim, o amor, a perda
Da individualidade,
Onde nos fazemos mais
Na medida em que menos,

Simples apêndice anexo
Totalmente subordinado,
Como um cão na coleira,
Identificado com seu dono.

O amor, ah! O amor,
Esse incômodo delicioso
Feito de feitos e por fazer,
Como um sol miudinho

Numa ensolarada praia
De sorrisos e cochichos.

O amor, ah! O amor.

IMPOSSÍVEL LOUVAR


Como louvar o amor
Se agora só memória
Chaga aberta, eco
De um grito rouco
Que não está mais?

Como falar de amor
Temporal de carícias
Se a aridez do frio
Assola e não consola?

Como ordenhar versos
De onde só brota dor,
A dor de um grito
Que não está mais?

DOIS ANOS


Entre vales e nuvens,
Decididamente só,
Navegando na memória
Ela beija netos e noras
Nos canteiros do quintal.

Estrela entre estrelas perdida,
Impossibilitando a identificação
Ela vela sonhos domésticos
E orienta as decisões cotidianas.

Há, na morta, a presença diária
Orientando decisões familiares
E dando provimento aos fatos
No tempo que flui na ausência.

Sempre que chove a morta chora
E suas lágrimas, abundantes e claras,
Escorrem das cumeeiras e calhas
Para molhar pétalas e rostos
Chorosos de saudades e orfandade.

Como o que não existe é impronunciável,
A morta não está morta, reverbera viva
Nas palavras dos netos, nas fotos,
Nas cabeças tristes dos filhos,
Em cada canção que, melíflua e doce,
Me rasga o mais íntimo das lembranças.

Não se pode dizer morta
A flor que perdura e se encarna
fruto e semente, outra planta
estampada nas dobras das manhãs.

Que podem os vivos senão mostrarem-se
No que fazem ou fizeram, atestando
A própria presença, permanente,
Ainda que estando distantes,
Semeando dúvidas e saudades?               


                 Não! Definitivamente
A morta não está morta.
Espera, paciente, os que ama
Pois sabe que todos os que vela
Caminham para o encontro,
Demorado, talvez adiável,
Mas certo e marcado como os passos
Da morta caminhando em nossos dias.

*N.A. – poema lido no programa Love’s Light, no segundo aniversário de falecimento da esposa do locutor.

MOMENTO


A lua cheia na janela
Me espreita cada intenção,
Como uma casta namorada
Dividida entre o sim e o não.

CARDICÍDIO


Inadvertidamente ou de propósito
Passei a vida tentando o cardicídio.

Fiz de cada veia via de trânsito
Para o envenenamento,
Entupindo-as deliberadamente:
Não bastassem as atitudes improváveis
E as iniciativas incapazes de justificativas,
Foram muitos carregamentos de nicotina,
Doses maciças de sal, gordura saturada,
Remédios de efeitos colaterais, sustos
Num coquetel teoricamente mortífero.

Nada. Surpreendente resistência assim
Colocou-me diante de cruel dúvida:
O amigo é de aço, mera peça metálica
A pulsar no ritmo das horas, ou tê-lo
De músculo, sangue e emoções é só
Equivocada suposição?

Aí apareceu você e seu comportamento.
E o cara, intoxicado de revolta e decepção,
Por fim morreu. 

NUDEZ


Encosta
Íngreme
E úmida
                      Penumbra
Paredes
Mornas
Morenas
                      Mormaço
Monte
De carne
De pelos
                      De Vênus.

ANTÍTESE


Fosses tu
imagem e semelhança de mim,
continuidade dos meus quereres
e soma dos meus precisos,
não haveria graça nenhuma
no assédio que te faço.

Busco-te não como a mim
no espelho, contido e refletido,
mas como forma selvagem
solicitando lapidação
ou barro sem forma
a ser trabalhado paciente.

Identificamo-nos pelas diferenças
e pelas diferenças nos completamos.

Fôssemos ambos areia,
não saberíamos da água,
não nos anunciaríamos praia.

SAUDADE


Um sorriso
De dentes claros
Boiando
Nas tardes
De outono.

QUERÊNCIA


Você me pede
um voto de fidelidade
uma prova de amor.

Pode o sol, brilhando,
dizer “eis que brilho?”
Ou as estrelas na noite,
consteladas-cintilantes
afirmar “nós somos?”

Ao que é está
interdito dizer sou.
Ao que está é
proibido dizer estou.

Para que tenho olhos,
senão para desmentir
o que as vezes falo
ou quase sempre calo?

O meu olhar
e o meu silêncio,
sobretudo o meu silêncio,
são os votos de fidelidade
e as provas do meu amor.

DECEPÇÃO


A traição. Sim, a traição
Mas não a do funcionário
Que depositário da honra
Subtrai sorrateiro e miúdo.

Pior. Não a traição do amigo que,
Diante de situação urgente se furta
A sofrer junto e junto partilhar
Dificuldades e carências, sofrimentos.

Traição pior, muito pior que a do corpo
amado em repasto distante, ausente
nos sussurros do pudor em delito,
nos gemidos da honra fazendo-se nada
e das juras e promessas violentadas.

Traição solerte e baixa, assim como
A do filho que não afaga e respeita
A mão que o alimenta e protege,
Agasalha nas tempestades emocionais.

A traição das mãos solidárias
sobre a cabeça confusa fugindo
do vazio numa explosão de dor
e que agora gesticulam urgentes adeuses.

E da voz aparentemente materna
Outrora, capaz de fechar chagas
E conter hemorragias, de acalentar,
E que agora, mergulhada na falsidade
Se esquece que um dia, cúmplice,
Em aparente sinceridade
Ousou balbuciar: “meu filho”.

PASSIONAL


Entretanto,predisposto ao gozo
lá estava ele arfando a ausência,
como se amadurecesse a morte.

Percebendo-a distante, ele tentou
as artimanhas de amante novo
fazendo-se fruto e vento, calor.

Dura e fria, talhada no granito
da indiferença, ela se punha imune
à devassa das mãos dele, nervosas.

A custo ele dominou a aflição e
clarividente, abriu a gaveta
e fez coincidir
o orgasmo e o estampido.

AGONIA


Esses amores obscuros
Feitos de tensão e medo
E que habitam o imponderável
Como plumas perdidas no vento.

Esses amores que não conhecem a paz
Mas tréguas entre combates,
Sempre armados e alertas, revidando
Ainda que o gesto não seja hostil.

Esses amores retrancados e defensivos
Rebatendo até o que não entende,
Se defendendo até do que não existe
Como numa barricada de soldados loucos.

Esses amores miúdos porque terminais
Como entardeceres de temporais
Anunciando longas noites de lágrimas
A serem evaporadas em manhãs de sol.